A ARTE COMO MEMÓRIA DA HUMANIDADE

Para Que Serve a Arte?

Para entendermos a resposta de Lukács é necessário lembrar, antes de mais nada, que a arte suspende a relação do homem com qualquer finalidade prática. Durante a fruição estética de um romance, diz Lukács, o leitor é colocado diante de uma representação concreta, historicamente datada, na qual os personagens típicos vivem as atribuições da condição humana.

 
A Noite Estrelada, de Vincent Van Gogh. Obra de 1889 

Para o espectador a arte tem um valor tanto documental quanto evocativo. Arte é documento: é o retrato de uma época, é fonte de informação básica para se conhecer a história. Mas a arte também tem um valor evocativo que se sobrepõe ao documental: uma criança pode chorar com uma tragédia grega mesmo sem nada conhecer sobre o tipo de sociedade vigente na Grécia Antiga; uma plateia de operários pode se emocionar com Romeu e Julieta, mesmo que o ambiente que circunda a tragédia dos amantes apareça como algo distante e quase incompreensível. 

De onde vem essa força evocativa da arte? Como explicar essa vigência da arte que ultrapassa longos períodos históricos? 

A força evocativa, segundo Lukács, deve-se ao fato de que na arte o passado é feito presente. Este passado atualizado não diz respeito somente à vida anterior de cada indivíduo. O que é posto em relevo é o caráter social da personalidade humana. O indivíduo, perante a figuração estética, pode se generalizar e, assim, confrontar a sua existência pessoal com a epopeia do gênero humano, retratada num momento determinado de sua evolução pela arte. 

 
Filósofo húngaro Georg Lukács (1885 / 1971) 

Ocorre, assim, uma elevação da subjetividade ao campo concreto da particularidade, a um momento determinado do autodesenvolvimento do gênero humano retratado pela arte. E isto se torna possível graças ao fenômeno próprio da grande arte realista: a catarse. 

A palavra grega catarse, usada originalmente na medicina, significava “purgação”. Aristóteles estendeu para a estética o termo catarse para mostrar que a arte tem como função a “purificação”: por meio da vivência artística o homem experimenta uma pacificação, uma liberação das emoções. 

 
Retirantes, de Cândido Portinari. Obra de 1944 

Lukács retoma essa ideia aristotélica e dá a ela um significado mais amplo. Segundo Lukács, pela catarse o indivíduo obtém a superação de seus limites ao identificar-se com o gênero humano, com a causa da humanidade. Na fruição da obra de arte, o espectador suspende a sua vivência cotidiana alienada e se reencontra com o gênero humano, confrontando-se com os eternos problemas da espécie que o artista conformou num contexto particular. 

Revivendo essas situações, o indivíduo experiência um momento da trajetória da espécie humana. A arte, portanto, é a memória da humanidade e o indivíduo que revive esses momentos passa por um processo de educação, de reencontro com o gênero humano. 

Guernica, de Pablo Picasso. Obra de 1937 

A finalidade social da arte realizada pela catarse é a “transformação das paixões em disposições virtuosas”. Como instrumento de “pedagogia social”, a catarse produz no receptor uma sacudida em sua subjetividade fazendo com que “suas paixões vitalmente ativas ganhem novos conteúdos, uma nova direção e, assim, purificadas, se convertam em substrato de ´disposições virtuosas´”. 

A catarse não se resume na embriaguez momentânea da fruição, no efeito meramente emocional, imediato, além de não ser nem sempre esse efeito algo positivo, já que o receptor pode tirar conclusões diferentes e contrárias ao espírito da obra. Nesse ponto, curiosamente, Lukács defende Brecht, que sempre desconfiou do efeito emocional da arte e, por isso, propunha o estranhamento, o distanciamento do público em relação ao representado. Lukács, então, procura, incluir o distanciamento brechtiano, afirmando que ele preserva o “núcleo da catarse”: 

O efeito de estranhamento [...] se propõe a destruir a catarse vivencial, meramente imediata, para dar lugar a outra que, mediante a comoção racional do homem inteiro da cotidianidade, imponha a este uma real conversão. 

A “real conversão”, o caráter potencialmente educativo e “exemplar” da arte é analisado por Lukács a partir dos dois momentos que circunscrevem a fruição estética: o “antes” e o “depois”. 

O indivíduo não é uma folha em branco: antes de se confrontar com a obra de arte ele já possui uma experiência de vida acumulada e uma visão de mundo articulada. A arte, contudo, obriga o indivíduo – com a maior ou menor eficácia – a confrontar as suas experiências com as novas experiências de vida que lhe são apresentadas. A obra de arte verdadeira é aquela que possui uma eficácia tal que o novo triunfa sobre o velho (as experiências do receptor). 

Mas nem sempre isso ocorre, Lukács, por trabalhar num nível de alta abstração, não considerou os incipientes estudos de sociologia da recepção. Quando enfoca as razões que explicam o fracasso da eficácia estética faz comentários gerais que envolvem o autor e receptor da obra. 

Às vezes, diz ele, o erro está no próprio artista que fracassa na realização da obra e, assim, impede que o receptor se identifique com o que lhe é apresentado. Outras vezes, porém, a insuficiência está no próprio receptor. Este pode tirar conclusões, para a vida, diferentes daquelas sugeridas pela obra. Ele também pode ter uma vivência negativa e limitada da catarse. Nesse caso, após a catarse ele volta ao cotidiano sem sofrer nenhuma mudança de comportamento. 

A eficácia da catarse de que nos fala Lukács pressupõe um público especial, com sensibilidade estética acurada, que é posta diante das verdadeiras obras de arte. Não se deve, portanto, confundir essa experiência singular com as emoções baratas dos dramalhões fabricados para o consumo imediato do chamado “grande público”. E nem com as formas menores de arte, aquelas voltadas para o mero entretenimento e que são incapazes de elevar o espectador. 

É apenas e tão-somente em condições especiais que a catarse efetivamente suspende o espectador de sua vida cotidiana, tirando-o da heterogeneidade e propiciando aquela elevação que o faz identificar-se com o gênero humano. Nesse momento, a obra de arte consegue finalmente destruir a imagem habitual que temos do mundo. O indivíduo, que se reencontrou e se identificou com a humanidade, é lançado de volta ao cotidiano. Mas agora é um homem enriquecido que conheceu a experiência vital e está apto a olhar para o mundo real com outros olhos. 
Notas 

Bibliografia

* Celso Frederico - Professor de sociologia na ECA-USP. Este texto foi extraído do Livro: Lukács um clássico do século XX; São Paulo: Ed. Moderna, 1997. Neste livro o autor comenta, dentre outras, a obra do filósofo húngaro George Lukács: A Estética. 

Um abraço e até o próximo post!
A ARTE COMO MEMÓRIA DA HUMANIDADE A ARTE COMO MEMÓRIA DA HUMANIDADE Reviewed by Luiz Macedo on fevereiro 11, 2010 Rating: 5

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